sábado, 13 de junho de 2009

A orelha fora de lugar



Em 1995, a rede de TV britânica BBC mostrou uma imagem que simbolizou o avanço da ciência e, ao mesmo tempo, inflamou aqueles que gostam de impor limites ao conhecimento humano – sem falar nos defensores dos direitos dos animais, especialmente os criados em laboratório.

O rato com uma orelha humana grudada nas costas é a própria imagem da teratologia científica: o fruto transgênico da engenharia genética rendeu logo ao cirurgião responsável pelo feito, Charles Vacanti, o apelido de Frankenstein contemporâneo.

Em entrevista à revista Época, um pesquisador brasileiro em Harvard, Dario Fauza, disse que a orelha nas costas do rato “não era funcional” e que “não houve nenhuma intenção de criar um monstro”. Para o médico, a experiência serviu “apenas para demonstrar a viabilidade de desenvolver uma estrutura cartilaginosa previamente moldada” e foi amplamente aceita pela comunidade científica.

O rato-monstro era, ele mesmo, modificado geneticamente, para não conter elementos que favorecessem a rejeição do tecido estranho. E a partir dessa conquista, a despeito da monstruosa aparência, a bioengenharia deu um grande salto, ao ver concretizada a suposição de que um tecido produzido em laboratório poderia ser incorporado ao corpo de um ser vivo.

Em 2007, o australiano Stelious Arcadiou, conhecido como Stelarc, deu sequência à série de intervenções que faz usando o próprio corpo, e apareceu com a prótese de uma orelha implantada no braço.

Pesquisador titular do Performance Arts Digital Research Unit da The Nottingham Trent University, na Inglaterra, Stelarc estuda as relações entre o corpo e a tecnologia, defende a superação física da natureza humana, e traduz seus conceitos em exposições vivas através de performances que chamam a atenção de grandes públicos. Sua intenção é que, por meio da arte, suas idéias ganhem maior alcance.

Mas o que o australiano cria e apresenta pode ser chamado de arte? “Claro que sim”, responde o professor e músico português Victor Afonso. “É um trabalho conceitual e criativo consistente - ainda que lide com o próprio corpo humano e que possa chocar mentalidades mais susceptíveis”, escreve Afonso em seu blog.

Em abril deste ano, o pesquisador-artista participou do Festival Internacional de Ciência, em Edimburgo, na Escócia, onde falou de seus planos de colocar um microfone para ouvir o que a sua “terceira orelha” escuta, retransmitindo os sons captados pelo braço na Internet.

O homem como objeto natural é confrontado por Stelarc e, neste confronto, a participação da ciência vai além de mera inspiração, proporcionando a emergência de choques culturais latentes na produção do novo conhecimento científico.

Ao tratar da body art, que tem em Stelarc talvez o grande representante, David Le Breton diz o seguinte (Adeus ao corpo, Papirus, 2003, pág. 46): “Os artistas pós-modernos ou pós-humanos consideram insuportável possuir o mesmo corpo que o homem da Idade da Pedra. Pretendem alçar o corpo à altura da tecnologia de ponta e submetê-lo a uma vontade de domínio integral, percebendo-o como uma série de peças destacáveis e hibridáveis à máquina”.

Radicalizações à parte, o que acontece é que tanto o artista quanto o cientista parecem trabalhar, de certo modo, pelo “aperfeiçoamento da própria natureza, débil e falha”, sendo o homem uma criatura “bruta, semi-acabada”, nas palavras da criadora de um dos maiores mitos modernos – Mary Shelley, autora de Frankenstein.

Ao analisar o caso de Leonardo Da Vinci, Freud escreveu que a arte manifesta não somente os desejos e conflitos do artista, como também a sua superação. Por seu lado, Gastón Bachelard, epistemólogo que cunhou a expressão “psicanálise do conhecimento”, utilizou o instrumental freudiano para afirmar que a ciência também promove a superação da subjetividade do cientista, a cada descoberta, a cada novo passo no caminho de retificação de seus próprios erros.

A orelha como um “objeto artificial”, seja no rato de laboratório, seja no braço de um artista, questiona o ser humano enquanto “objeto natural”, e mais, enquanto “sujeito natural”, dono de uma natureza que deixa de ser perfeita, no reino de um ideal clássico, e passa a se configurar incompleta – como se ao humano potencializado pela tecnologia sempre faltasse alguma coisa. Paradoxalmente, essa falta remete a uma inocência perdida, a complexos cristalizados na trajetória de uma ciência que constrói mais dúvidas que certezas enquanto avança.

Arte e ciência remexem igualmente no material inconsciente, levantando poeira nos porões de uma cultura assentada e estabelecida. Segundo Roberto Romano, há, “nos porões da consciência moderna, uma fantasmagoria gerada na luta de séculos contra as práticas científicas”, pelo menos desde o Renascimento.

Bachelard dizia que “aquilo que é puramente fictício para o conhecimento objetivo permanece profundamente real e ativo para os devaneios inconscientes”. Mais profundamente real e ativo, por extensão, como matéria-prima da expressão artística. O epistemólogo concluía que “o sonho é mais forte do que a experiência”.

Seria trabalho da arte fazer o inverso, tornar a experiência mais forte do que o sonho? Foi o mesmo Bachelard, também um estudioso do imaginário, quem disse que os eixos da ciência e da poesia podiam ser complementares, apesar de serem eixos opostos para a imaginação. Em sua ótica, a ciência é a “estética da inteligência”.

Na confluência da arte com a tecnologia, as mudanças de paradigma patrocinadas pela ciência alteram a percepção da subjetividade, ao mexer em conceitos que explicavam o mundo para o conforto do ego. Quando o mundo não é mais o mesmo, o ego se perturba – está aberta a possibilidade da arte. E quando o homem passa a produzir o homem, a reinventar o humano e se reposicionar no mundo natural, ocorre a “explosão do horizonte humanista”, no dizer de Peter Sloterdijk, filósofo autor de Regras para o parque humano, uma resposta à Carta sobre o humanismo de Martin Heidegger.

Essa explosão do humanismo se dá, não pela sua negação, mas pelo contrário, a partir do agravamento de questões filosóficas ancestrais: de onde viemos? O que é o humano?

Obviamente essas perguntas sem resposta não têm nos impedido de continuar pensando, duvidando, criando. As investigações da arte e da ciência possuem raiz comum, na inquietação que acompanha o ser que pensa.

O curso de Arte e Tecnologia da Fundação Joaquim Nabuco será uma excelente oportunidade para aprimorar a visão desse encontro, especialmente no que diz respeito à reformulação dos conceitos de “natureza” e “natureza humana”, e às modificações no âmbito da subjetividade promovidas pela ciência e aprofundadas pela arte.
Carta de intenção para o curso da Fundaj.

2 comentários:

  1. Gostei muito do texto.
    Mais Stelarc:
    www.youtube.com/watch?v=Tu6hrz1QTnM

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  2. para os rato tem alguam hutilidade as orelhas nas costa

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