domingo, 19 de julho de 2009

Direto da Terra do Nunca

De dentro da caixa de luz apareceu, cresceu, agonizou e morreu o monstro black & white, nem preto, nem branco: a criança prodígio, o adolescente explorado, o artista criativo, o adulto conturbado, o astro pedófilo. Monstro de múltiplas faces e nenhum rosto definido, alma em borrão em busca de um corpo mutante, Michael Jackson e sua história estão agora eternamente conectados à cultura da televisão.

Antes de morrer, e ter a morte transformada em evento de mídia tanto quanto cada passo de sua vida, MJ redescobriu a TV como linguagem pop, através do código inovador do videoclipe tratado como superprodução. Investindo na contratação de diretores de renome e na realização de efeitos especiais com computação gráfica. Seu pioneirismo é reconhecido ao mesmo tempo como grande lance de marketing pessoal, e virada marcante para a arte do entretenimento e a indústria cultural no século 20 – da qual foi simultaneamente produto e produtor.

Talvez a presença constante, desde os Jackson 5, nos programas de variedades da TV americana, tenham lhe despertado a intuição de que o seu caminho passava por ali, pela exploração dos efeitos da exposição maciça naquela caixa mágica. Ele pôs então o cinema a serviço da TV para vender música. Fazendo uso de novas formas de vestir e dançar, misturou tudo e, nesse caldo, viu surgir legiões de seguidores que o imitaram, passando a cultuá-lo como rei.

Comparado a Elvis, pelo alcance popular, e até a Beethoven, pela influência que deixou, MJ confirmou na partida prematura toda a sua majestade. A geração MTV, que em 1983 assistia ao clipe de “Thriller” no Fantástico, rendeu-lhe tributo à altura da devoção, sintonizando os canais que exibiram seu funeral para o mundo inteiro.

O videoclipe ajudou a propagar o fenômeno MJ, delineando a silhueta da época que podemos chamar de aurora da era televisiva. Uma nota de sua partida demonstrou, porém, o peculiar apego das massas por seus ídolos de carne e osso – e que os acompanham além do umbral da morte.

Com a transmissão em tempo real de funerais de figuras públicas, a TV apenas deixou isto mais nítido. E contribuiu, claro, para aprofundar a disposição coletiva, na medida em que ampliou o arco do pesar compartilhado, prolongou a surpresa da perda, unindo milhões de espectadores naquilo que seria, sem a TV, um inimaginável cortejo visual.

O luto de um planeta em rede se espalha na malha dos meios de comunicação. O luto na TV é a extensão do luto público presencial que vem de outros tempos. A cidade de Viena parou para enterrar Beethoven em 1827. O Rio de Janeiro, em 1954, rendeu homenagem ao presidente Getúlio Vargas, no funeral cuja cobertura ainda foi feita pelo rádio em cadeia nacional. Elvis Presley, em 1977, teve um velório de 80 mil pessoas, e seu falecimento fez o presidente americano Jimmy Carter declarar que, com ele, morria uma parte dos Estados Unidos. A cantora Elis Regina, em 1982, Tancredo Neves em 1985 e Ayrton Senna, em 1994, são exemplos de suspensão temporária do cotidiano no Brasil, com a transmissão dos funerais pela TV. O sepultamento da princesa Diana, em 1997, mobilizou um número estimado de 2,5 bilhões de espectadores. Em 2009, foi a vez de Michael Jackson.

Como essas ocasiões, no entanto, não são comuns, trazem a reboque o desafio de rechear de lógica a emoção comungada. Locutores e repórteres dificilmente sabem o que falar em um enterro, ou editores sabem o que fazer, para prender uma audiência que já estaria ali, postada em frente à janela luminosa, de qualquer jeito, para ouvir a mesma notícia e rever as mesmas imagens repetidamente.

É então que a tragédia ganha ares de farsa, repisada pela mídia que busca a impossível tarefa de deixar mais trágico ainda o fato original, durante o vagaroso desfile de despedida da multidão. Diante do ilustre cadáver, é assim a marcha dos vivos, multiplicado em marcha mental pela máquina límbica da televisão.

A suspeita de farsa é maior no caso da montagem de fabulosos eventos que aproveitam a conjunção popular no intuito de extrair o máximo de publicidade paralela em algumas horas de audiência certa. “Não posso ser parte de um circo público. Como me sinto, é algo entre nós, não um evento público”, criticou a atriz Elizabeth Taylor, um dia antes da cerimônia fúnebre, que se deu no último dia 7.

A imagem evocada por Taylor é perfeita, e não somente no sentido pejorativo. Jackson fez da sua vida um circo, e dificilmente escaparia dele depois de morto. Por outro lado, debaixo da lona circense os grandes artistas arrancam da platéia genuínas reações. Provavelmente, direto da Terra do Nunca, o rei do pop estaria satisfeito com o recato de sua amiga, mas não condenaria o sentimento explícito devotado, ao redor do mundo e da TV, por inconsoláveis fãs.
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Ilustração: Funeral de Beethoven em Viena, 1827 - Tela de Franz Stober

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